Mais um "artigo definido" para compor a variedade da nossa colecção de textos temáticos. Desta vez, Thruxtonic disserta sobre o que caracteriza um Tasca Racer.

Pode parecer uma brincadeira, ou uma tentativa de ridicularização, mas não é. Ao contrário, trata-se de uma observação perspicaz, e até elogiosa, da relação com as motas no mundo menos urbanizado.

As fotos são o bónus.

 


 

Os Tasca Racers 351

 

por Thruxtonic

 

 

Se os finais da década de 60 marcaram o apogeu do café racing em Inglaterra, pela mesma altura, os portugueses também marcaram em força o panorama motociclistico nacional com a emergência do tasca racing. Que é afinal esse fenómeno, mais vasto que o inglês, mais social que cultural, mais produto de uma emergência industrial que de uma contracultura, protagonizado mais por Homens verdadeiramente de barba rija que por simples destemidos?

Para os que são míopes a ler nas entrelinhas, ou que não têm suficiente sentido de humor, ou seja, para ninguém, acrescente-se desde já que se trata de uma abordagem respeitosa, embora algo caricatural, a um fenómeno social que de facto ocorreu em Portugal e que acompanhou uma profunda mudança no modo de vida das populações não urbanas do país.

Essa famosa década de 60 assistiu a um grande fluxo migratório de portugueses para os países mais ricos da europa, à cabeça dos quais estava a França, que então vivia um período de grande desenvolvimento. A pobreza grassava, mas o conformismo e a paralisia gerada por um grande imobilismo tradicional do Estado Novo são abalados pelo desencadear da Guerra Colonial e pela percepção de que o isolamento internacional do país estava prestes a ser quebrado.

A obediência, o ser pobre mas honrado, o orgulhosamente sós, lemas tão caros ao regime de então, parece agora insuficiente para muita gente inconformada com o atraso e a miséria em que viviam, sobretudo entre as populações rurais. O desenvolvimento industrial do qual tinham benificiado tantos países desde o início do séc. xx, tinha-lhes passado ao lado, caracterizando-se o país por uma vasta população que ainda vivia no campo, recorrendo a uma agricultura de autosubsistência e procurando empregos nos centros urbanos como fuga à miséria. Os mais decididos emigravam.

Com a Guerra Colonial e os grandes movimentos migratórios, quer internos quer  para o estrangeiro, surge finalmente alguma saída do amorfismo social. O crescimento dos sectores secundários na economia  nacional começam a criar empregos em torno das grandes cidades, afastados dos tradicionais terrenos agrícolas e dos seus habitantes rurais. A bicicleta, como meio de transporte individual que substituiu o burro e a carroça, vê-se agora substituída pela “motorizada”, estimulada por fabricantes nacionais e pela necessidade de cobrir maiores distâncias para se poderem aceitar oportunidades de emprego que iam surgindo. Esses foram os nossos primeiros motociclistas, aqueles que se tornaram, talvez por força das circunstâncias, os responsáveis pela  popularidade das motas em Portugal, à época, uma curiosidade em constante evolução tecnológica e crescimento, num tempo em que os carros eram um sinal exterior de riqueza e uma raridade face ao que hoje conhecemos.

Muitos desses homens de então continuam a usar as suas motorizadas, as mesmas motorizadas, para as suas deslocações. Um mecânico e dono de oficina na província confidenciou que nunca trabalhou com japonesas, as motas são sempre as mesmas e, tendo herdado o negócio do seu falecido pai, com quem aprendeu a arte, continua a fazer a reparação das motas que eram assistidas por ele, motas que ele conhece, tal como aos donos, desde criança – Zundapp, Famel, EFS, V5, etc.

Esses pioneiros forçados não corriam entre si enquanto a jukebox tocava Bill Halley, corriam mas era do trabalho na fábrica para uma tasca onde, por força da sincronia laboral, os seus amigos chegavam à mesma hora. Uma vez juntos, jogava-se matraquilhos, à malha ou chinquilho, dominó ou suecada, com a condição de tudo ser regado a tintol, desde a chegada à partida. Nunca ficavam ébrios, só alegres, graças aos fígados habituados a zurrapa a martelo a que eles generosamente sempre se referiam por “bela pomada”, sublinhado por um estalido com a língua. Cá fora, as máquinas eram cobiçadas pela garotada de pé descalço que ainda não tinha acesso a esse mundo.

Morriam abundantemente, ceifados pelas estradas nacionais e caminhos de terra, pelas deficientes máquinas e ausência de equipamento adequado, tudo favorecido por “um grãozinho na asa”, a antiga designação da taxa de alcoolemia. Os mancebos que sobreviviam às suas aventuras iam parar com os costados na tropa, eram empacotados em navios da marinha mercante, muitos viam o mar pela primeira vez nessa ocasião e eram despejados no mato africano, para trabalharem numa guerra que não lhes dizia respeito. Uma vez regressados, se regressassem e em condições, seguia-se o casamento, a descendência e o desligar da motorizada.

Mas nem todos. Muitos continuavam a necessitar das suas motorizadas para ganhar a vida, deslocavam-se de casa para o emprego, do emprego para o amanho da terras, com a enxada amarrada ao “porta-couves” e daí para as suas casas, com a condição de fazerem sempre uma paragem para reabastecimento na tasca. Aí, entre uns copos de três, os veteranos falavam das suas bravatas e dos pormenores exóticos, qual embaixada de D. Manuel ao papa, os mais novos interrogavam-se se estariam à altura e os mortos no ultramar eram evocados com respeito. Depois partiam, cada um para a sua aldeia da região, para no dia seguinte tudo começar de novo, o mais igual possível.

A tasca era, e ainda é, um centro de encontro e convívio social entre homens onde, à porta delas, continuam ainda a figurar essas máquinas dos anos 60 e 70. As mesmas máquinas e os mesmos personagens, como que a lembrar a todos que eles e as suas máquinas são feitos do melhor material possível, aquele que resiste ao tempo e a todas as adversidades. É gente de fibra que se desloca com a sua roupa do dia-a-dia, tendo como protecção um capacete pouco mais que simbólico, mas que transportam consigo uma espécie de imunidade que é apanágio só dos mais temerários: uma enorme fé em si próprios e nas suas máquinas aparentemente eternas, aquelas mesmas que nunca os deixaram ficar mal.