A literatura, ou simples relato de viagens, sempre fascinou todos os que, sendo amantes de viajar (não confundir com turismo), também percorrem espaços, lugares e gentes através do olhar dos outros. Foi sempre assim, e assim será, desde os tempos de Marco Polo, da Rota da Seda, de Fernão Magalhães e de tantos exploradores que sempre encontraram alguém que relatasse as suas proezas, quando os próprios não o faziam.

Aqui, desta vez, tivemos a sorte de encontrar no espírito aventureiro do z1000rider também a generosidade de partilhar com todos nós uma viagem de sonho pela Índia até à cordilheira do Himalaia, uma formação montanhosa que se estende por cinco países e onde fica o chamado "tecto do mundo". Como se isso não fosse aventura bastante, z1000rider ainda nos brinda com o facto de todo o percurso ter sido feito numa mota mítica, a Royal Enfield Bullet, uma máquina que é presentemente a mais emblemática herança motociclistica inglesa e que só por si já tem um poder de fascínio que nem todas as máquinas podem exercer.

Para além da excelente aventura com que nos deparamos, e que não está obviamente ao alcance de todos, os que sonham com ela têm aqui também neste relato na primeira pessoa, por vezes do plural, um excelente guia de viajem, um ponto de partida para fazer os seus próprios planos ou, no mínimo, sonhar com isso.

O nosso obrigado pelo prazer da leitura, que é, afinal, também uma forma de viajarmos.

 

 


 

India em cima de uma Royal Enfield - I

 

por z1000rider

 

Bullet, Himalaias e caril...
 
 Introdução à viagem:


Andava já algum tempo a planear uma viagem à Índia com a minha namorada, eu já lá tinha estado e ela tinha grande vontade de conhecer. Queríamos ir uns meses para dar para sentir a Índia minimamente. Acordamos uma data depois de algumas datas alteradas e apontamos para meados de Janeiro, que na altura por motivos de força maior passou para 26 de Janeiro de 2010.
A ideia de viajar pela Índia de mota crescia em mim desde o começo de 2008, altura em que tinha estado lá e tive uma bullet alugada por uns dias em Goa. A ideia de viajar de mota era apenas uma hipótese. Era preciso ver se ela, namorada alinhava, se conseguia comprar sem estragar o orçamento e  também queria que ela tivesse a experiência do comboio.
Ficamos acordados que depois de estarmos lá se via que tal seria.

 Chegada à Índia:
 
Tínhamos bilhete para Delhi, Bombaim dava mais jeito, mas o preço era mais elevado. Quando chegamos a Delhi o avião abortou a aterragem, o comandante explicou que um dos “liners” não estava a funcionar e com o elevado nevoeiro que estava não seria possível aterrar de outra forma. Entretanto havia grande congestionamento para aterrar e com medo de falta de combustível fomos aterrar a Bombaim, entretanto a minha namorada que estava meia a dormir ouviu apenas “not enough fuel” e ficou em pânico teve que vir a tripulação acalmar. Lá fomos para Bombaim, já no aeroporto ficamos retidos no avião 3h porque não podemos sair num destino que não o do check in.
A solução encontrada foi reter os passaportes e levar para um hotel reservado pela BA, bom o hotel era top, mesmo top, era da cadeia Taj...puro luxo era de chorar a rir ver os siks pé descalço( típico qué frô?) a olharem para os tectos do atrium sem saber o que pensar. Unico ponto negativo foi ter perdido um dia porque tivemos que ir para Delhi na mesma. (nessa noite foram desviados dezenas de aviões de Delhi)

 
Já em Delhi onde apenas queria passar um dia, fiquei na parte antiga onde estão os turistas backpackers e onde existem muitas lojas q vendem e alugam bullets fui ver preços e não achei mau, mas tinha acabado de chegar tinha medo de comprar uma mota em mau estado e quando desse problemas já estaria eu a caminho do sul. Decidi então comprar em Bombaim onde tenho uma grande amiga que conhece toda a gente e de certeza que não seria aldrabado ou em Goa onde tenho família e facilmente arranjava alguém para dar um apoio.

 
A Delhi chegamos de noite, fomos para o hotel e no dia seguinte fui mostrar Old Delhi à namorada, basicamente uns passeios pela rua, um salto à Jama Masjid, mesquita encomendada pelo imperador mughal Shah Jahan o mesmo que construiu o Taj Mahal. Fui aproveitar para ir comprar rolos fotográficos B&W( a preços ridículos apenas comprei 25 porque não dava jeito viajar com mais ehehehe), almoçar no Al Jawahar e jantar no fantástico Karim's.

 

Nessa mesma noite apanhamos o comboio para Agra (terra do Taj Mahal) onde passamos um dia, apanhando o comboio para Jaipur. Jaipur cidade muito apreciada por muitos para mim basta um dia e está feito. Seguimos para uma terra junto ao mar Arábico e Paquistão, Bhuj.


Bhuj ficou no nosso coração depois da pressão toda que existe sobre os turistas para nos aldrabarem, riquexós a preços inflacionadíssimos, foi bom chegar a um local destes onde não precisem de regatear nada. Foi também aqui que experimentámos alugar uma mota por 3 dias, para dar uns passeios até à praia e zonas de artesanato, etc, muito bonita esta região chamada Kutch. Motas aqui só consegui mesmo uma hero honda ( hero é marca de bicicletas indianas) 125cc, eu não sou propriamente pequeno, em cima desta mota era de chorar a rir lol. O que é facto é que me valeu uns passeios muitos simpáticos.

Não sei se dá para ter noção do tamanho da mota em relação ao meu. Ao fim do quarto dia estava na altura de rumar a Bombaim.

O comboio para Bombaim demorou umas boas horas 18 talvez, ainda por cima ao chegar a Bombaim ficámos parados, tinham morridos umas 6 pessoas na linha( infelizmente lá é comum) e ficamos parados nas zonas das barracas e consequentemente aromáticas. Entretanto aproveitei para ligar à minha amiga de lá para dizer que ia fazer uma surpresa, claro que ela estava a trabalhar num filme em Bangalore, e Bombaim sem ter lá ninguém não é nada a mesma coisa. Entretanto tinha dito a um primo que estava a viver em Goa que lhe dava uma ajuda com a compra de uma máquina fotográfica e eu sabia onde se fazia bons negócios em Bombaim. Eles chamam de grey market( lol não é branco nem negro) e pedi à minha amiga que também é fotografa o contacto do tipo que a fornece. Resolvida a história da máquina, fugimos para Goa o mais rápido possível. Ela já estava em pânico, sem exagero, com a pressão/aldrabice/stress deste enorme centro urbano, apenas 16 milhões.

Chegada a Goa soube a mel, o meu primo veio buscar-nos com a carrinha, tomamos um banho e não me lembro mas aposto que fomos tomar um refresco, já se sabe que de cevada.
À antes de mais,falta referir, que a viagem até Bombaim e os momentos já lá foram decisivos para a compra da mota lol. Entretanto o meu primo tinha perguntado a um conhecido e proprietário de uma bullet se sabia de alguma para venda, depois de algumas chamadas ele disse haver uma por 30 000inr, em Delhi seria 40/45...nada mal. Para meu azar o mecânico que estava a vender essa mota desapareceu por morte de um familiar e eu tinha muita pressa tinha 5 dias para estar em Kochim, uns 850km de distância.  Entretanto fui sondando mecânico, turistas etc e mesmo classificados...só encontrei vigarices.

Tivemos a sorte de presenciar um espetáculo de dança clássica indiano, no dia seguinte foi Rodrigo Leão. Nada mal...

Numa noite no night bazar, a minha namorada encontra uma amiga dos tempos de primária, coincidência estranha, mas mais estranha é voltarmos a encontrar na praia passados 2 dias e um holandes amigo dela ter uma RE para venda. O Eric não queria vender a mota tão cedo mas para ele também era bom porque pode pedir o preço justo sem ter medo.  Ele pediu 35 000INR
(cerca de 500€) que me pareceu bem, mas isto tudo sem sequer ver a mota lol. Disse que eu precisava da mota para o dia seguinte, ele não estava à espera, mas lá combinou comigo no mecânico porque queria substituir os rolamentos traseiros. Fui buscar a mota ao mecânico a Mapusa e segui para Panjim. No dia seguinte iniciamos a viagem para Kochim, 850km  não parece nada mas na India pode ser muito, dependendo da estradas.
Pormenor, a mota para minha surpresa já tinha disco à frente e também suporte para mochilas.

Panjim – Mangalore
(400km, calculei 8h, apesar de me falarem em 10h)

 Eu estava numa excitação mas também com algum receio, receio de acidentes, receio de que a minha namorada se fartasse, de ter problemas na mota enfim...
Nesse dia saímos bem cedo, ainda era madrugada a ideia era estar a passar Palolém antes das 8h( cerca de 80km). Os indianos com quem falava falavam em médias de 40km/h, eu não quis acreditar e pensei vou bem devagar, mas caramba 50 já é muito bom.

Bom, dá para imaginar que parte dessa "Auto-estrada" é junto ao mar... passei por zonas à saida de Goa, entrada de Karnataka estradas sobre o mar que eram esmagadoras, mas a cena de parar a mota e ir buscar alguma das máquinas e tirar foto, enfim erro!!! mas também é o problema de não ter uma maquina compacta...é tudo à pro lol.
A NH 17 é supostamente a auto-estrada indiana com maior transito, muitos, muitos, mas mesmo muitos camiões numa estrada que está ao nível de qualquer estrada secundária em Portugal(nos anos 80). A condução é do mais artístico que há, mas felizmente é uma estrada sempre a direito, pelo menos nos locais com mais transito. As partes sobre o mar têm aquelas curvas deliciosas. Foi aqui nesta estrada que aprendi uma valiosa lição sobre a condução na Índia.
Qualquer pessoa que ande de motorista na Índia vai estranhar o facto de os condutores apontarem o carro ao camião que vem em sentido contrário, simples só se pode desviar quando se está perto se começamos a mostrar que nos desviamos eles nem se mexem podendo nos atirar para fora da estrada. acaba por acontecer volta e meia de qualquer das formas.
A minha média estava a ir bem, confesso que agora acho que podia ter reduzido as ultra-passagens( afinal ainda estava a apalpar terreno). Mesmo a chegar à entrada de Mangalore, o centro é para ai a 20km, havia um engarrafamento num cruzamento e vendo as motas todas a irem pelo lado decidi também ir. Na Índia os stops são umas luz sem necessidade lol, a mota à minha frente travou e eu reagi travando principalmente com o da frente, ora estrada cheia de terra e pneu quase slick é fácil adivinhar...tapete. Eu ainda fiquei eu pé mas ela caiu e o suporte das mochilas trilhou-lhe a perna...foi uma gritaria que pensei que tinha sido grave lol ( a queda foi a 5km/h lololol lá consegui acalmar a senhora e voltar à estrada. Como ainda tinha tempo decidi não ficar em Mangalore mas descer uns 40km até uma terra de pescadores Muçulmanos chamada Bekal. Foi dormir e arrancar de manhã em direcção a Calicut.

Em relação a Calicute, pouco tenho a contar, cheguei a meio da tarde. A entrada numa cidade indiana é uma dor de cabeça, engarrafamentos sem fim etc. Entretanto no meio dos engarrafamentos com tanta utilização da embraiagem o cabo ficou com demasiada folga, já tinha que puxar a bicha ao mesmo tempo que apertava a manete. Lá desenrasquei um mecânico que resolvesse o assunto e percebi como resolver da próxima vez, mas na Índia nem justifica sujar as mãos por 50cent se resolve quase tudo.

Entretanto eu já me encontrava num estado de nervos descomunal sem conseguir levar a mota para lado nenhum e decidi encostar numa esquina para acalmar e perguntar por bullet mechanic. Saí da mota e vem ter connosco um velho com aspecto de mendigo e pergunta de onde somos, quando lhe digo Portugal ele ficou histérico aos berros a dizer portucal! portucal! portucal! com ar de alucinado começa a gritar iorserbiiio, iorberbiiio, iorserbiiio!!! eu já com medo que ele fosse fazer algum disparate e ele diz football player...estava a falar do grande Pantera Negra! Foi uma gargalhada!

Acabámos por ir para um hotel mais caro do que queríamos, os baratos estavam cheios com uma feira de qualquer coisa, lá fomos para um de 4* a pagar 40€ enfim sempre deu para um bom banho. Sim, a minha namorada foi ver o preço do hotel e depois chamou-me eu estava com tanta sujidade que o rapaz do hotel me perguntou se eu era indiano. O camiões lá resolvem usar kerosene em vez de petróleo, daí cada vez que se ultrapassa um se ficar cheio de fumo de kerosene.

Calicute - Kochim
(206km Calculei em 5h, já para não haver problemas de atrasos, tinha que chegar antes das 14h)

 Saí de Calicute cedo e a viagem correu sem problemas, a chegada a Cochim teve alguma dificuldade a nível de orientações mas lá chegámos antes das 14h. Os meus Pais iam lá ter connosco mas eu não queria contar que estava a viajar de mota, quem conhece as estradas da Índia percebe o porquê. Parei a mota em frente ao hotel, tomámos um banho e lá estava limpinho para receber os progenitores.

Em Kochim ficámos 3 dias, incluindo 1dia de passeio de barco com dormida nos Backwaters, uns canais muito turisticos.

No fim deste 3 dias em Cochim e Backwaters com os meus Pais, nós iamos continuar a descer e os meus Pais iam subir para Goa, mas de Avião. Decidimos então ir a uma plantação de chá no interior de Kerala, cujo nome é Munnar.

 

Cochim - Munnar
 
 127km
 
 
 
 Bom antes de sairmos fomos comprar capacetes novos, o meu era aberto com bastante pinta mas estava tão justo à testa que me provocava dores de cabeça, o dela era integral e sinistro...não foi fácil arranjar capacete para a minha cabeça...cá uso xl. Lá conseguimos uns manhosos como todos por lá são.
 
 O uso de capacete na Índia tem vindo a apertar, mas no entanto existe uma regra deliciosa, só o condutor tem que usar... há muitos estrangeiros que simplesmente ignoram a lei, mas se apanhados tem que pagar uma multa de 1,6€ !lol
 
 Já de capacete novo e em direcção à saída da cidade, numa das principais avenidas apanhei um cagaço descomunal, algo cai em cima das minhas mãos e do guiador, magoei-me um pouco mas nada de mais, nem parei...desconfio que devia estar um macaco na árvore.
 
 A estrada para Munnar ficava mais bonita quanto mas perto íamos estando e quanto mais íamos subindo. Estrada de montanha com uma vegetação espectacular. Bom, chegar às primeiras plantações foi genial. Munnar sobe até 2600m acima do nível do mar.
 
 Aqui ficam umas imagens de passeios que dei com a RE por Munnar
 
 

 
 
 

Ao fim de três dias muito bem passados de passeios em estradas vazias de montanha rodeado de campos verdes e de cheiro a chá, decidimos voltar ao litoral e ir descansar para a praia.

O depósito não foi amolgado num acidente que destruiu a frente toda, mas o deposito não foi arranjado, eu acabei por mandar reparar passados 2 meses, por 2,5€ ficou direitinho.

Agora para finalizar deixo a imagem que apanhei enquanto começava a descer Munnar por volta das 6 da manhã e com um frio que me deixou as mãos roxas, toda a roupa para o frio tinha ficado em Goa, em casa do meu primo. No sul estava calor mas a 2600m de altitude e às 6h da manhã...

 Os dias seguintes foram de descanso, fizemos a viagem até Varkala onde fizemos 3 dias de praia descendo de seguida para Kovalam para outros 3 dias de praia e já estávamos fartos de praia.
 
 
 
 Destes sítios não tenho grande coisa a relatar, praia e mais praia.
 
 Descemos então para a ponta mais a sul do sub-continente indiano, Kanyakumari. É neste ponto que se cruza o oceano índico, o mar arábico e o mar da baía de bengal. Os indianos dizem que se vê perfeitamente a mistura dos 3 "oceanos", 3 oceans era o nome do nosso hotel.
 
 Kanyakumari é uma cidade de peregrinação e sem grande interesse turistico para um ocidental, que não o da sua posição geografica.
 
 

Esta estátua a primeira vez que a vimos achamos que era de um deus hindu, mas quando fomos ler desistimos logo de ir visitar, é dedicada aThiruvalluvar poeta indiano, tem mais de 40m de altura, foi inaugurada a 1 de Janeiro de 2000 e a 26 de dezembro de 2004 levou com o tsunami de 2004.
 
 
 

 

 (continua)