O Café Racer 351 faz mesmo muita questão em homenagear aqueles que tudo deram para que as gerações seguintes tudo tivessem. Conseguiram-no, mas para isso muitos tiveram que dar a própria vida.

O texto que se segue, o segundo desta modesta trilogia, versa sobre um episódio que foi considerado por muitos como os dez minutos mais importantes da guerra. São aqueles "momentos decisivos", socorrendo-me da expressão favorita de Cartier-Bresson para definir a força das suas fotografias, que aqui marcam a força dos homens de carácter.

Red Dust brinda-nos com um texto emocionante e comovente que retrata de forma muito viva, e com um enorme respeito pelo rigor factual, esse momento que proporcionou de forma irreversível o avanço aliado na Normandia. Além do brilhantismo da sua escrita, é a sinceridade da sua homenagem e o enaltecimento do exemplo desses homens que enriquece as suas palavras e nos marcam os sentimentos.

Obrigado, Red Dust.

 


 

(Conquistar e manter) A Ponte Pegasus

 

por Red Dust

I

 

Sentado no banco corrido do frágil planador Horsa, o Major John Howard, comandante da companhia D do 2º Batalhão de Infantaria Ligeira da 6ª Divisão Aerotransportada britânica “Oxfordshire and Buckinghamshire”, revia mentalmente os planos exaustivamente apresentados pelo Brigadeiro Nigel Poett. Tinha por objectivo conquistar e manter, até à chegada de reforços vindos da praia, as duas estreitas pontes de Bénouville e Ranville, com os nomes de código Pegasus e Horsa respectivamente, de modo a precaver e evitar um contra-ataque germânico contra o flanco esquerdo da Grande Invasão.

Se, para as conquistar, contava com o destemor dos seus homens somado à surpresa da acção, protegido pelo silêncio dos planadores e pelo escuro da noite, mantê-las seria uma história completamente diferente. Uma força ligeira de infantaria, ideal e eficaz para o golpe de mão, pouco poderia fazer se fortemente confrontada com artilharia ou unidades de tanques. “Hold until relieve”, dissera-lhe Poett. Assim seria: aguentar até ser rendido.

A frágil estrutura em seu redor rangia e protestava nos solavancos que, a espaços, o bombardeiro Halifax à sua frente lhe provocava, puxando-os um pouco mais para dentro da escura noite, por cima do Canal, a caminho da costa francesa. Howard, ali sentado entre os seus homens, capacete de pára na cabeça, fivela e queixeira ainda soltas, não poderia saber naquele momento, mas a Companhia D do “Ox and Bucks”  ficaria na História como a primeira unidade a entrar em acção no Dia D. O “Dia dos Dias”. 6 de Junho de 1944, data da maior acção militar alguma vez empreendida. No final desse “dia mais longo”, 250 mil homens terão desembarcado nas praias da Normandia e iniciado a marcha, ainda difícil e penosa, para Berlim, pondo fim ao jugo nazi na Europa.

 

II

 

“Ike” era um um general de Estado-Maior brilhante. Meticuloso, organizado, político, tirava o melhor dos seus homens de campo, fossem eles o “General-soldado” Omar Bradley, o indomável “Sangue e Tripas” George Patton, ou os “páras” Ridgway e Taylor, e era mestre em conciliar sensibilidades entre os aliados, especialmente face à sobranceria aristocrata do imprevisível Montgomery. A Operação Overlord era algo nunca visto, nunca tentado. Uma onda metálica e humana, gigante, que se abateria sobre as praias da Normandia disposta a romper a Muralha do Atlântico. Dwight Eisenhower foi seu gestor militar, da organização e comando. Estratega e, acima de tudo, orquestrador e concretizador. Durante o todo o Dia D guardou no seu bolso um rascunho de derrota onde assumia pessoalmente as culpas de um possível fracasso: "If any blame or fault attaches to the attempt it is mine alone".

Às forças aerotransportadas estavam destinadas as tarefas de golpe de mão, sabotagem, tomada de encruzilhadas e pontes e posterior protecção de contra-ataques, num lançamento nocturno seis horas antes do desembarque. Os americanos no flanco direito, com a 101ª, “Screaming Eagle”, e a 82ª, “All American”, Divisões Aerotransportadas; os ingleses no flanco esquerdo com 6ª Divisão Aerotransportada Britânica. A estes pedia-se-lhes que, “aguentassem o flanco Este de onde, previsivelmente, poderia chegar um ataque em força pondo em risco a solidez do corpo que, até ao final da tarde de 6 de Junho, deveria ter Caen – um dos principais objectivos do desembarque – nas mãos. Demoraria mais de um mês e não foi por inabilidade dos “diabos vermelhos” (assim chamados devido à cor da sua boina).

A 6ª Divisão tinha vários objectivos para essa madrugada, sob o nome de código Operação Tonga. Anular a bateria de Merville previa-se tarefa árdua, a cargo do 9º Batalhão, mas fundamental para evitar que estas peças de artilharia colocassem risco a abordagem às praias de Gold, Juno e Sword onde as forças canadianas, francesas e britânicas teriam de desembarcar. Assim como não seria pêra doce tomar e manter o território pantanoso entre os rios Dives (a Este) e Orne (a Oeste) e das encruzilhadas das principais vilas; neste caso seriam as 3ª e 5ª Brigadas a garantir o sucesso da empresa. Não só a característica do terreno dificultava a tarefa do lançamento de pára-quedistas, como os famosos “Espargos de Rommel” (troncos espetados na vertical) tornavam quase impossível a “aterragem” dos planadores.

 

III

 

No planador nº1, o sargento Jimmy Wallwork lutava com os comandos para contrariar a gravidade e os fortes ventos enquanto mantinha ligada a extensa corda ao seu rebocador. Outros, já nessa noite, haviam ficado pelo caminho; porque as cordas se partiram ou algo correu mal. Houve mesmo quem nem chegasse a sobrevoar a Mancha. Ao seu lado, o sargento John Ainsworth, co-piloto, perscrutava a noite em busca da linha de costa. O seu objectivo estava a escassos quilómetros para o interior e a julgar pelo aspectos das nuven já sabia que a orientação não seria fácil. O seu “pássaro” teria de aterrar (os planadores não aterram, despenham-se de forma controlada) numa estreia faixa de terreno entre o Rio Orne e o Canal de Caen sobre o qual se encontra a ponte basculante a que agora chamam Pegasus, o mais próximo possível dela, atravessando um campo de vegetação baixa e rochas, evitando um pequeno lago e tendo o arame farpado da posição de defesa da ponte como referência final. Antes teriam de virar 180º pois o sentido da aterragem era Sul-Norte, o contrário da aproximação.

Com o objectivo à vista, Wallwork soltou a corda que o mantinha ligado ao Halifax e avisou, por cima do ombro, Howard que se sentara imediatamente atrás de si. “Prender as armas, levantar os pés, dar os braços” (o equivalente ao “levantar, enganchar, verificar” nos lançamentos de pára-quedistas). Os trinta e um homens do primeiro pelotão da companhia D assumiam as posições de aterragem e esperavam. Wallwork procurava o sítio certo e o tempo adequado para tocarem no chão. Parecia-lhe que iam demasiado depressa pelo que recorreu ao pára-quedas do planador (nunca testado) para desacelerar, o que aconteceu quase em simultâneo com o primeiro embate com o solo. Ao mesmo tempo, temia desacelerar demasiado, não por ficar longe do objectivo, o que também seria embaraçante pois os soldados teriam que correr umas centenas de metros podendo comprometer o efeito de surpresa, mas principalmente porque, se o fizesse, corria forte risco de ser abalroado pelos planadores dos 2º e 3º pelotões que seguiam imediatamente atrás de si.

Um ruído infernal apoderou-se da cabina, madeira a partir, ferro a torcer. Pelas janelas viam-se as faíscas provocadas pelo contacto do metal nas pequenas rochas, mas ao cabo de poucos segundos, o aparelho imobilizou-se, o nariz enfiado no arame farpado, a Ponte Pegasus ali à frente. Mais tarde, o Marechal do Ar Leigh-Mallory, comandante das forças aéreas aliadas no Dia-D, considerou esta aterragem o maior feito de voo de toda a II Guerra Mundial.

 

IV

 

00h16m de 6 de Junho de 1994. Por instantes nada se ouviu, ninguém se mexeu. A própria sentinela da Ponte sobre o Canal de Caen, a uma escassa centena de metros, não percebeu o que tinha acabado de acontecer. Estranhou o barulho mas, basicamente, não ligou. Tomou-o por destroços de um bombardeiro abatido a caírem ali ao lado. Aos poucos, dentro da estrutura retorcida do planador nº1, o primeiro pelotão recuperava do choque. É o momento em que o treino dá dividendos. Instintivamente, sem que uma ordem seja dada ou uma palavra, sequer, proferida, cada um sabe o que fazer. Armados com as suas Sten, Bren e Enfield, os homens da companhia D abandonam os destroços e preparam-se para atacar o seu objectivo. Passara cerca de um minuto; instante em que o planador nº 2 aterra, este com mais estrondo, já que se parte em dois, deixando o cockpit à beira do pequeno lago. Mais um minuto e aterra o terceiro planador, também ele com violência.

De imediato, alguns homens do primeiro pelotão atacam uma posição de metralhadora, neutralizando-a, enquanto a maior parte do grupo se dirige para a ponte, sob o comando do Tenente “Den” Brotheridge, de modo a conquistar o outro lado. Uma sentinela grita “fallschirmjäger” (pára-quedistas!), correndo a abrigar-se. É disparado um sinal luminoso, o alarme está dado. Os disparos começam. Brotheridge, já no lado oeste da ponte lança uma granada aniquilando mais um ninho de metralhadora, mas no instante seguinte é atingido por um tiro no pescoço. Tomba mortalmente ferido. É a primeira baixa do Dia D em troca de fogo com o inimigo.

O segundo pelotão avança para “limpar” a margem este nas cercanias da ponte. O terceiro pelotão tem doze homens encurralados dentro dos destroços do planador, entre eles um morto a lamentar. O seu comandante, o Tenente Smith, todavia, reagrupa os homens que conseguem sair e junta-se à refrega. É ferido de imediato, mas corajosamente prossegue a sua missão. Enquanto se trocam tiros em ambas as margens do canal, os sapadores, indiferentes ao tiroteio, procuram nos alicerces e por baixo do tabuleiro indícios de explosivos. Embora tenham encontrado os dispositivos de preparação não encontraram cargas pois os alemães não as chegaram a colocar temendo um rebentamento acidental ou uma acção de sabotagem por parte de resistência francesa.

Recuperada da surpresa, a guarnição alemã ripostou. Mas, sem conseguir perceber muito bem a dimensão da força que estava a combater, foi fraquejando. Os que não foram abatidos ou feridos, renderam-se ou fugiram. Com os disparos a tornarem-se esporádicos, o Major Howard sabia que tinha a Ponte Pegasus na mão. Mas estava apreensivo com o que se estaria a passar no lado do rio Orne. Os planadores que transportavam os quinto e sexto pelotões aterraram no local planeado, mas o planador do quarto pelotão aterrou muito mais para Este, falhando por completo a LZ (Landing Zone) respectiva. Só viria a juntar-se ao resto da Companhia no dia 7 depois de uma série de peripécias que incluem a sua captura e posterior fuga. Enquanto isso, o sexto pelotão, sob comando do Tenente Fox, não teve dificuldade em conquistar a ponte de Ranville, defendida por um ninho de metralhadora que estava alerta, mas só. Quando o quinto pelotão, que aterrou algumas centenas de metros antes do local previsto, chegou à ponte esta estava dominada. O quinto pelotão não disparou um tiro. Do seu posto de comando, Howard mandou o soldado das transmissões enviar o código de missão cumprida: “Ham and Jam”

O golpe correu na perfeição; com algumas baixas, mas com uma eficácia a toda a prova. Eram 00h26m de 6 de Junho de 1944.

 

V

 

“Hold until relieve”. A noite seria longa e o desembarque teria que ser um sucesso para os Comandos do Lord Lovat renderem a Companhia D do “Ox and Bucks” em Bénouville e Ranville. Esperando uma resposta nazi mais pronta e forte vinda daquela primeira vila, o sexto pelotão reforçou os homens de Howard na Pegasus, deixando apenas o quinto na cobertura da Horsa.

Confusos, incrédulos, atacados em vários pontos, incluindo na rectaguarda pela resistência, a lidarem com doses avultadas de contra-informação, um pouco por toda a Normandia, os alemães tardaram em ripostar. Passaram-se longas horas até que se organizasse uma resposta. Entre acções isoladas e ataques sem sentido, apesar de tudo, as forças nazis foram-se reposicionando e à medida que enviavam pequenos pelotões de batedores, aperceberam-se que uma das posições mais importantes a conquistar seriam as pontes sobre o canal de Caen e sobre o Orne; tão importantes para os aliados acederem a Leste, como para as forças ocupantes movimentarem as suas tropas.

Durante a noite, a Companhia D foi frustrando as tentativas de recaptura das pontes por parte de unidades de reconhecimento alemãs. Desde as cinco da manhã que as salvas dos navios ao largo da Normandia se ouviam claramente naquele pedaço de terra entre as duas pontes. O desembarque estava prestes a começar. Em seu redor, o cerco ía-se fechando. As pequenas escaramuças foram dando lugar a fogo de morteiro. Mas eram os tanques que os “páras” mais temiam. E sabiam que eles acabariam por vir.

 

VI

 

Todd Swinney repetia nervosamente os gestos que todos faziam há já mais de uma hora. Olhava para o relógio a cada dois ou três minutos. Mais frequentemente a cada saraivada de morteiros. Os Comandos deviam ter chegado ao meio-dia. Eram uma da tarde e nada. Foi então que começou a ouvir um som inconfundível e familiar. Primeiro desconfiou, depois quis confirmar a e começou a perguntar aos seus camaradas se também ouviam. O Sargento Thornton achou que Todd estaria a sucumbir de cansaço.

O Major Howard saíu do seu abrigo e olhou para a estrada que vinha do mar. E viu distintamente. À frente dos homens da 1ª Brigada de Serviço Especial de Comandos vinha Bill Milin apertando com convicção o saco de pele da sua gaita-de-foles e logo atrás, o Brigadeiro Lord Lovat, boina verde e camisola de lã branca, arma na mão, aristocrático. Mesmo a tempo, a rendição da Companhia D chegava para continuar a batalha e romper o cerco. Com eles, alguns tanques Churchill. “John” – disse Lovat ao cumprimentar Howard – “hoje está a fazer-se história”. E estava.

 

Conclusão

 

O episódio da captura da Ponte Pegasus, cujo tiroteio durou apenas dez minutos, é apenas um entre muitos episódios de coragem, abnegação, dedicação e cumprimento do dever, vividos nessa noite e nesse dia em que alguns bravos e muitos “cidadãos soldados” dobraram a esquina da História, inventando um novo futuro. Abrindo uma janela de liberdade e progresso, começando um novo Mundo.

Como os Rangers em Pointe Du Hoc, os páraquedistas da 82ª e da 101ª, e todos os que, por terra, mar e ar fizeram do Dia D um marco na história dos povos, os “boinas vermelhas” de Howard contribuíram com a sua valentia e exemplo pondo o interesse de todos acima da sua própria vida. Um punhado de homens pode fazer a diferença.

Cito Stephen E. Ambrose: “Qual o significado desta acção? Porque o sucesso da operação foi total, nunca saberemos a exacta dimensão do seu significado (…) No mínimo, um falhanço na ponte Pegasus teria elevado o custo do Dia D para os Aliados, especialmente para a 6ª Divisão Aerotransportada. No máximo, um falhanço na Ponte Pegasus teria, possivelmente, significado o falhanço da própria Invasão como um todo, com consequências para a civilização demasiado horrorosas para serem contempladas.”

 


 Álbum de memórias

 “Our landings have failed and I have withdrawn the troops. My decision to attack at this time and place was based on the best information available. The troops, the air and the Navy did all that bravery could do. If any blame or fault attaches to the attempt it is mine alone.”  Eisenhower, (rascunho preparado para o caso de derrota).

 

O embarque dos páras

 

O Major John Howard (ao centro) e os snipers da companhia D

 

Os 3 planadores de ataque Horsa perta da Pegasus. Repare-se na proximidade ao alvo obtida apenas com navegação de bússola e cronómetro.

 

O estado em que ficaram os planadores documentam bem os riscos da chegada ao alvo e em plena escuridão da noite.

 

O herói David Wood. Com apenas 21 anos liderou o 24º pelotão da 6ª Divisão Aerotransportada no assalto à Pegasus.

 

Coronel David Wood (1923-2009). Foi o último sobrevivente desse dia de glória.