O Café Racer 351 sente orgulho em poder apresentar um texto inaugural e uma ilustração, ambos inéditos, da autoria de Alexandre "Hang Tough" Gonçalves.

As raízes do fenómeno café racer, a cultura em que floresceu e o humanismo que lhe está associado ficam bem retratados por este nosso convidado que, além de purista, é um profundo conhecedor da World War II, um artista plural, gráfico com pergaminhos, escritor e um grande amante de motas.

Esperamos que gostem e sigam com expectativa esta série de "Artigos definidos".

 


 

 

Até que amorte (n)os separe

 

 

por Alexandre "Hang Tough" Gonçalves

 

  Dificilmente se encontrará, na história da segunda metade do século XX, um casamento tão feliz como o que uniu um meio de transporte e uma forma de arte – a moto e a música; e tão felizes foram (e são) que a primeira ganhou ao longo dos anos estatuto de forma de arte. Mas não falo de qualquer moto nem de qualquer musica, até porque há quem goste de uma sem gostar de outra e vice-versa – falo de “Café-Racers” e de Rock n’ Roll e, tanto quanto sei, quem gosta de uma gosta da outra, incondicionalmente. Ambos filhos bastardos, nascidos das cinzas de uma guerra que devastou o mundo, cresceram inseparáveis, rebeldes e redefiniram a forma de estar de toda uma geração, mantendo virtualmente inalterada até aos nossos dias a fórmula original. Dois países foram pais destes filhos: a Grã-bretanha, economicamente exangue pela guerra mas herdeira de excelência artística e técnica, e os Estados Unidos, que saíram do conflito mais ricos do que quando entraram e com o invejável estatuto de serem uma das duas super potências.

Milhares de Tommies e G.I. Joe’s, sedentos de diversão, gozaram a paz com a chave-inglesa numa mão, a guitarra na outra, e a “sweetheart” nas duas. A santíssima trindade desses dias substituía o “Drugs” pelo “Bikes” e tudo podia ser feito no mesmo sítio – a garagem do pai. O MG e o Buick passaram a dormir na rua e os pais, orgulhosos do filho que se alistou soldado e regressou sargento, e por isso condescendentes, aceitavam o barulho infernal, a poupa e o cabedal. Nessas garagens deram-se os primeiros passos de personalização das máquinas – o supérfluo retirado, o motor vitaminado, o amortecedor rebaixado. O conforto passava para ultimo lugar – tudo em nome da velocidade; as motos pouco mais eram do que um motor com rodas, e quase tudo, feito de forma artesanal, sem a sofisticação das “custom bikes” de hoje.

A base de trabalho era na maioria dos casos proveniente dos depósitos de material de guerra. Centenas de Triumphs, BSA’s, Nortons, Harleys e Indians que sobreviveram à guerra mais ou menos ilesas eram compradas a preços de “ocasião” e iniciavam nova vida. A música seguia o mesmo caminho – simples, rápida e suada. A cama queria-se macia e quente depois de um ano a dormir em “foxholes” lamacentos ou gelados, mas as máquinas eram de barba rija. Após 65 anos de vida em comum e vasta descendência, a maioria dos nostálgicos continua a achar os pais mais bonitos do que os filhos. Longa vida, e que continuem adolescentes de mãos dadas!

Uma história de amor que só a morte separa...

 

"Hang Tough"